quarta-feira, dezembro 21, 2005

Minha MeNINA..

A peça "Tua mão na minha" aborda a relação do escritor russo com a atriz Olga Knipper, sua mulher

Anton Tchekov, Peter Brook, Michel Piccoli. Um único dos três nomes já seria suficiente para justificar a ida ao teatro. Os três reunidos são a garantia de momentos de deleite puro, de epifania que a relação platéia-atores pode criar.

"Tua Mão na Minha" -peça de Carol Rocamora a partir da correspondência entre Anton Tchekov e Olga Knipper, atriz alemã que se tornou mulher do dramaturgo- é um encontro marcado entre três grandes artistas do palco. Sim, porque Piccoli sempre alternou o cinema com o teatro, fundamental na sua vida.

Premiado tanto nos palcos como no cinema, Piccoli transformou-se num ícone entre os atores franceses. E a presença de Natasha Parry, mulher de Peter Brook, uma Olga extraordinária, transforma o trio excepcional em quarteto. O resultado é evidente : uma hora e meia de grande teatro que os privilegiados espectadores assistem no Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, inaugurado em 1875, com o nome de Théâtre Molière.

O inglês Peter Brook fundou em Paris, em 1973, o CICT (Centre International de Création Théâtrale) e se instalou no Théâtre des Bouffes du Nord no ano seguinte, com "Timon de Atenas", de Shakespeare. Entre as dezenas de peças que ele encenou no seu teatro, "A Cerejeira", de Tchekov, tinha Piccoli e Natasha Parry. Ela vivia Lioubov, o papel que Tchekov criara para Olga.

Agora, o quarteto Piccoli-Tchekov-Brook-Parry volta ao semi-círculo do teatro, restaurado com extremo bom-gosto para abrigar a companhia de Brook. A opção da restauração, um achado, foi deixar aparente o trabalho do tempo nas paredes e nas pilastras. Só o ambiente do teatro já vale o ingresso. Mas o bom é que tem muito mais.

Olga encontrou Tchekov quando tinha 29 anos. Ele tinha 38 anos.
"_ Ela era atriz.
_ E se encontraram. Como se conheceram ?
_ Foi numa leitura, numa leitura de 'A Gaivota'.
_ Sim, 'A Gaivota', abril de 1898, você se lembra? 'Meu amor, você é a última página da minha vida.' Como gostei de dizer essa frase! Minha preferida!"


Se Piccoli e Natasha são bem mais velhos que seus personagens, que importância isso tem? Os grandes atores não têm idade, a emoção e o talento não estão subordinados ao tempo.

Dentro de um cenário de uma simplicidade franciscana, os dois evoluem num jogo dramático em que o texto conta mais que os mirabolantes jogos de cena. Discreto, o cenário consta de apenas três cadeiras, uma escrivaninha e um tapete.

O semi-círculo do palco do Bouffes du Nord onde se passa toda a peça fica na altura dos espectadores da platéia, sem nem mesmo um tablado a separá-los. Nem quando mudam de cidade, o cenário muda.

A minimalista encenação de Peter Brook conta com a imaginação dos espectadores, que ouvem a troca de confidências e emoções, em cartas que iam e vinham pelo correio, num tempo distante em que elas eternizavam os amores e as paixões. Com a implantação do telefone, o hábito de escrever cartas foi começando a morrer. O golpe fatal foi dado pela internet.

Piccoli e Natasha Parry vestem a mesma roupa do início ao fim da peça. Ela usa uma blusa branca e uma saia preta longa que poderiam ter sido usadas por Olga, mas que hoje ainda não parece uma roupa "démodé". Essa mesma opção de um costume atemporal foi feita para Piccoli.

O ator é de uma elegância impecável, num terno bege e camisa da mesma cor. Ele calça uma bota curta bege. Nada em seu figurino é muito marcadamente moderno, mas também não tão datado ao ponto de ele não poder sair do teatro com a mesma roupa.

Tchekov e Olga viveram seis anos juntos. A relação foi interrompida pela morte do escritor, em 2 de julho de 1904. As separações constantes eram dolorosas para ambos. Eles compensavam a distância escrevendo cartas. Olga precisava estar em Moscou, sempre envolvida com novos espetáculos, seu mundo, o dos atores, diretores e autores de teatro. O escritor, tuberculoso, não suportava o frio intenso de Moscou. Vivia sozinho em sua casa de Ialta, onde a atriz vinha encontrá-lo sempre, para descansar ou seguir viagem de tratamento ou trabalho: Paris, Berlim, Nice e Badenweiler, onde finalmente a tuberculose o venceu.

Olga trabalhava na companhia de um jovem diretor de teatro chamado Konstantin Stanislavski. A última peça de Tchekov, "A Cerejeira", foi escrita justamente na casa de campo de Stanislavski, em 1904. Tchekov, médico de formação, Stalislavski, Gorki e Rachmaninov formavam um grupo de amigos que se freqüentavam, muitas vezes trabalhando juntos, num período de extraordinária criação artística na Rússia imperial.

O escritor e sua atriz, para quem ele criou o papel de Macha na peça "As Três Irmãs », trocam nas cartas impressões sobre a arte, contam os encontros e relatam os pequenos momentos do cotidiano, vã tentativa de vencer a distância. Tchekov trata sua mulher de "minha cadelinha", "minha pequena bêbada". Sutil e low profile, Piccoli não tenta sobrepor-se ao personagem. Nada em sua atuação é excessivo.

Tchekov estava minado pela doença, mas não perde o senso de humor característico de seus primeiros trabalhos, os contos humorísticos. Suas peças e seus contos revelam o alegre melancólico que ele era. E Piccoli encontrou o tom justo para esse personagem, que se sabe condenado pela doença, mas não perde a alegria de viver.

Piccoli disse certa vez que não tem nenhuma angústia da morte, mesmo se essa idéia de desaparecer o deixa muito triste. Talvez essa sua leveza em relação à morte tenha sido fundamental para construir seu personagem, um homem que se apaga aos poucos.

Ao partir para sempre, dirigindo-se a Olga, Tchekov responde com uma pergunta à sua interrogação sobre o sentido da vida :

"Qual é o sentido?".


----"Uma comédia, três papéis de mulher, seis para homens, quatro actos, uma paisagem (vista para um lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de acção, um toque de amor".